Canudos - Diário de uma expedição, Euclides da Cunha, 18/8/1897

Sétima carta enviada pelo autor durante sua cobertura para o 'Estado' sobre o conflito

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Por Redação
Atualização:

Publicado no Estadao em 26/8/1897. Essa carta foi publicada na mesma edição de outra com data de 16 de agosto.

Em dias de junho ultimo um dos filhos de Macumbira, adolescente de quinze annos abeirou-se do rude chefe sertanejo:

- Pae, quero destruir a matadeira. (Sob tal denominação indicam os jagunços o canhão Krupp, 32, que tem feito entre elles estragos consideraveis).

O sinistro cabecilha, especie grosseira de Imanus acobreado e bronco, fitou-o impassível:

- Consulta o Conselheiro - e vae.

E o rapaz seguiu acompanhado de onze companheiros atrevidos.

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Atravessaram o Vasa-Barris secco e fraccionado em cacimbas, investiram contra a primeira encosta á margem direita, embrenharam-se, num deslisar macio e silencioso de icobras, pelas catingas proximas.

Ja era meio o dia.

O sol, num firmamento sem nuvens, dardejava a pino sobre os largos taboleiros, lançando sem fazer sombria, até ao fundo das quebradas mais fundas, os raios verticaes, ardentes.

Naquellas paragens longínquas e ingratas o meio dia é mais silencioso e lugubre do que as mais tardias horas da noite. Reverberando nas rochas expostas, largamente reflectido nas chapadas desnudadas, sem vegetação ou absorvidas por um sólo secco e aspero de grez, os raios solares nugmentam de ardor, e o calor emittido para a terra reflúe para o espaço nas calumnas ascendentes do ardilatado, morno, irrespiravel quasi.

A natureza quéda-se silenciosa num anniquilamento absoluto, não sulca a viração mais leve os ares, com transparencia perto do sólo se perturba em ondulações rapidas, candentes; repousa dormitando a fáuna resistentes das catingas; murcham as folhas, exsiccadas, nas arvores crestadas.

O exercito repousava esmagado pela canicula.

Deitados e esparsos pelas encostas, bonets postos aos rostos para resguardal-os dormitando, ou pensando nos lares distantes os soldados aproveitavam alguns momentos de treguas, restabelecendo forças para a afianosa líde.

Em frente, enorme, derramanda sem ordem sobre a larga encosta em que se erige, com as suas exiguas habitações desorodenadamente espalhadas, sem ruas e sem praças, acervo incoherente de casas, apparecia Canudos, deserta e muda, como uma tapera imensa, abandonada.

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Circunvalhando-a, em parte, como um fosso irregular e fundo, o Vasa-Barris prolonga-se á direita, sinuoso, desappareccendo, longe, entre as gargantas abruptas de Cocorobó. No fundo, fechando o horizonte, desdobrava a lombada extensa da serra da Canna-brava...

O exercito repousava... Nisto despontam, emergindo cautos, á borda do motto rasteiro e trançado de arvores baixas a esgalhadas, na clareira em que estaciona a artilheria, doze postas espantados - olhares rupidos a erscrutando todos os pontos, - doze rostos apenas de homens ainda mergulhados, de rastos, no seio trançado das macambiras.

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E surgem lentamente; ninguem os vê; ninguem os póde ver; - dá lhes na costas, numa indifferença soberana, o exercito que repousa.

Em frente, a cincoenta metros apenas elles divisam o objetivo da empreza.

Como um animal phantastico e monstruoso, o canhão Krupp, a matadeira assoma sobre o reparo resistente, voltada para Bello Monte a bocca truculenta e flammivorna - alli - sobre a cidade sagrada, sobre as egrejas, prestes a rugir golpehando as granadas formidaveis - silenciosa agóra, isolada e immovel - brilhante o dorso luzidio e escuro, onde os raios do sol caem, reflectem, dispersam-se em scintillações offuscantes.

Os fanaticos audazes aprumam-se á borda da clareira e arrojam-se impavidos sobre a peça odiada.

Vingam a distancia do salto e circumdam o monstro de aço, silenciosos, terriveis - resfolegando surdamente.

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Um dos mais robustos traz uma alavanca pesada; - érgue-a e a pancada desce violentamente, retinindo.

E um brado de alarma altissimo é viral, partindo bruscamente o silencio universal das coisas, multiplicando-se nas quebradas, enchendo o espaço todo, desdobrando em écos que ascendem de todos os valles, reflúem rapidos nas montanhas, um brado de alarma alteia-se, numa vibração triumphal, estrugidor e immenso.

Formam-se rapidamente os batalhões; num momento os atacantes ousados vêm-se, presos, num circulo intransponivel de bayonetas e caem sob os golpes e sob as balas.

Um apenas se salva, golpeado, baleando, saltando, correndo, rolando, intangivel entre os soldados, atravessando, uma rêde de balas, vingando os pontos das byaonetas, caíndo em cheio nas catingas que atravessa velozmente e despenhando-se, livre afinal, alcandor ado sobre abysmos, pelos pendores aprumados da montanha...

Estas e outras historias, contam-nas, aqui, os soldados, collaboradores inconscientes das lendas que envolverão mais tarde esta campanha crudelissima.  

Anterior (16/8/1897) - Próxima (19/8/1897)

Tags: Guerra de Canudos, Euclides da Cunha  

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