PUBLICIDADE

Canudos - Diário de uma expedição, Euclides da Cunha, 24/9/1897

Na 18ª carta enviada pelo correspondente do Estado, o relato do cerco a Canudos

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

Publicada no Estado em 12/10/1879.

PUBLICIDADE

CANUDOS- Completo hontem o cerco de Canudos, a lucta correrá vertiginosamente agóra. Os successos de hoje o indicam.

Desde muito cedo a direita da nossa linha avançou estreitando o sitio e estabelecendo com o inimigo um combate que irá num crescendo inevitavel. travaram-se combates parciaes, peito a peito, dentro das casas mais proximas, rapidamente cercadas. Á audacia indomita do jagunço contrapõe-se neste momento a bravura innegavel do soldado.

Escrevo rapidamente estas linhas, no meio do tumulto quasi, emquanto a fuzilaria intensa sulea os ares a cem metros de distancia.

Acabam de chegar alguns prisioneiros.

O primeiro é um ente sinistro -; um estilhaço de granada transformou-lhe o olho esquerdo numa chaga hedionda, de onde gotteja um sangue ennegrecido; baixo e de compleição robusta, responde tortuosamente a todas as perguntas:

- Está apenas ha um mez em Bello Monte e nada tem com a lucta; nunca deu um tiro porque tem o coração molle (1) etc. Nada revela.

Publicidade

Chegam mais duas prisioneiras, mãe e filha; a primeira esquelética e esqualida - repugnante, a segunda mais forte e de feições attrahentes. Evitam egualmente tanto quanto possível responder ao interrogatorio do general. A filha apenas revela:

- Villa-Nova esta noite lascou o pé no caminho (2) e ha um lote de dias 93) que um despotismo de gente (4) tem abancado (5) para o curube o Caypan. Está com muitos dias que ha fome em Bello Monte.

A velha nada sabe, evita todas as respostas e nada póde dizer sobre o numero de inimigos porque só sabe contar até quarenta!

Morreu-lhe o marido ha meia hora; era um bahiano truculento; expirou atravessado pelas balas, cinco minutos depois de haver morto com um tiro de bacamarto ao alferfes do 24º Pedro simões Pontes e murmurou com um sorriso sinistro ao expirar:

- Estou contente! Ao menos matei um! Viva o Bom Jesus!

São duas horas da tarde e já temos 13 baixas.

Chega mais um jagunço preso.

Publicidade

Deve ter sessenta annos - talvez tenha trinta; vem meio desmaiado: no peito desenha-se, rubra, a lamina de uma espada, impressa por uma pranchada violenta. Não póde fallar, não anda.

Mais outro: é um cadaver claudicante. Foi ferido ha dois mezes pela explosão de um schrapnell quando se acolhia ao sanctuario. Uma das balas atravessou-lhe o braço e a outra o ventre. E este ente assim vive, ha dois mezes, numa inanição lenta, com dois furos no ventre, num extravasamento constante dos intestinos. A voz sae-lhe da garganta imperceptivel quasi. Não póde ser interrogado, não viverá talvez até amanhan.

No collo de um soldado do 5º chega um outro,- tem seis mezes.

Foi encontrado abandonado numa casa. e o pobre engeitado passa, indifferente ao tumulto, acobertado pela propria inconsciencia da vida. Depois uma velha com a feição typica de raposa assustada.

E mais outros. Creio que entramos no periodo agudo da lucta que talvez não dure oito dias. Está fechado o circulo do ferro em torno de Canudos.   

Anterior (10/9/1897) - Próxima (26/9/1897)  

Tags: Guerra de CanudosEuclides da Cunha  

Publicidade

# Assine |# Licenciamento de conteúdos Estadão |

Euclides150Canudos

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.