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Aldir Blanc, tem como mandar um recado meu pro João Ubaldo?

Por dois anos, compositor, músico e poeta escreveu crônicas dominicais para o Caderno 2

Por Acervo
Atualização:

Autor de clássicos inesquecíveis da música brasileira, Aldir Blanc [1946-2020] por dois anos escreveu crônicas para o Caderno 2 do Estadão. Foram 98 textos publicados aos domingos desde a estreia com 'Pintos, patos e burros', em 3 de março de 1996, até 26 de julho de 1998, quando encerrou a série com o texto 'Picadinho pós-quase-penta'. Na crônica 'Academia Brasileira de Maluquices', brincou: 

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- Você escreve crônicas no Estado? Me preparo para os elogios, mas invariavelmente meu ego recebe um prato de vatapá nas bochechas: - Você tem como mandar um recado meu pro João Ubaldo? Aquela do tremelique na hora de assinar foi demais! 

O compositor, cronista e poeta faria ainda mais duas colaborações pontuais para o jornal. Uma naquele mesmo 1998, sobre os 90 anos de nascimento de Cartola, e outra em 2005, quando escreveu sobre a despedida do craque Romário.

Leia as crônicas de Aldir Blanc nas páginas Estadão e abaixo a transcrição de três delas.

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Como diria o Cebolinha: um país de melda!  [27/7/1997] ALDIR BLANC Encontro o compositor Moacyr Luz vomitando ao pé de um esquálido oiti: - Oi, Môa. - Bleaaaaaargh! - Encaverou de novo? Meteu o pé na jaca? Bom, vou indo. - Bleaaaaaaaaaargh! Peraí. Ai, meu Deus... Não foi bebida, não. Tô assim porque acabei de ler as notícias sobre a CPI dos precatórios. Peguei o jornal no chão, passei os olhos nas páginas armafanhadas e só tive tempo de gorgolejar, antes de chamar o Raul: - Chega um pouquinho pra lá que eu também vou mandar pitta. Aqueles que se alegraram pelas esculhambações que levei da torcida do Grêmio estão serjãomente enganados. A semana que passou deu- me uma certeza sobre as atribulações do cronista de jornal: é preferível mil vezes ser escarrado pela torcida de um time de futebol do que receber cumprimentos das cobras e lagartos do Senado Federal. O Tuma ia prender e acontecer, lembram? Editoriais elogiavam "aquela casa", o Senado, pela limpeza. E deu no que deu. O artigo do último domingo, embora debochado, foi escrito sob a égide da florida obsessão nelson-rodriguiana. O de hoje, não. As palavras de hoje nascem do nojo, do asco, da aversão, e coloquem aí quantos sinônimos e vocábulos afins encontrarem nos dicionários. Que os corruptos voltem para seus vectras, piscinas, haras, matadouros, mas, pelo menos, não saiam impunes das páginas dos jornais. Dito isso, passemos à saudável e vingativa galhofa: saiu o laudo! O furo no aviação da TAM foi causado pelo chupa-cabras. Já os suga-frangos escaparam ilesos. É um país de melda, como diria o Cebolinha. Peguem os jornais ao acaso. Das notícias econômicas à convocação da Seleção Brasileira, não há uma frase que não nos envergonhe. O professor José Aristodemo Pinotti, titular de Ginecologia da USP, jogou as luvas fora e chamou a ação dos planos e seguradoras de saúde de "looby do genocídio e bem engendrado complô macabro". Muito bem. Pena que deposite suas esperanças na ação dos políticos. Bancando o mendigo de programa humorístico, devo acrescentar: meu nobre colega, é com a cumplicidade deles que os chupa-cabras dos lobbies sugam o sangue do povo brasileiro. Em todo caso, sugiro que a Abramge (entidade que reúne os açougues da medicina de grupo) passe a se chamar Murder (Médicos Unidos Representando o Descaramento Empresarial do Ramo). O peru Sadia emprestou o termômetro ao Pitta, que já o colocou no... pois é... para medir a temperatura da crise. Minutos depois um porta- voz vendeu a informação: - Trata-se de um vírus parlamentar. A febre renunciou, mas volta a qualquer momento, dependendo da proposta. - E o termômetro? - Tomou um calor danado, sonhou tornar-se pauzinho de chicabom em Miami, mas também renunciou, preferindo continuar quietinho no Kuwait. Antônio Carlos Magalhães tirou a TV dos Ratos ou, por outra, o Senado do ar durante a votação-quitanda do relatório Requião. E justificou: - Mandei suspender a transmissão por causa do decoro(o grifo é meu) da casa, que a mim cabe preservar. Ou seja: o rastaustero presidente do Senado reconheceu de público que a transmissão daquela diarréia conjunta seria indecorosa. No Japão pintaria um convite pro Malvadeza cometer haraquiri. Em nossas plagas, a purgação máxima é um banho de assento em vatapá ardido. Em tempo de tititi nos galinheiros, a titi-kinha da semana vai para a boca precavida de Luis Carlos dos Santos, Ministro da Articulação Política, cuja função, o cargo já o declara, é falar: - Eu tô rouco. Inacreditável. Enquanto isso, o venerando Itamar não aceita ultimato - a menos que esteja sem calcinha. Machão! Está sendo investigado o envolvimento da Obelisco e da AdOro numa licitação fraudulenta para fornecimento de frangos ao goleiro Taffarel. A CPPizza, em manobras intestinas de última hora, livrou a cara do Bradesco. Eu já havia brincado aqui a respeito das privatizações que, visando a criar empregos e diversificar investimentos, acabam na mão de um grupo só. Sintam a ironia: a companhia de gás do Rio foi privatizada. Tudo feito com tamanha "transparência" que o perdedor do leilão comemorou e o vencedor estava de saída, quando um técnico explicou que não era nada disso: o "vencedor" havia perdido e o "perdedor" podia voltar pra botar a mão no ouro. Apareceu como representante do vencedor o Bradesco, ora, ora. Mas só como representante, porque o vencedor mesmo, no duro, era - tchan! - o Grupo Vicunha, aquele que levou a CSN, a Vale, minha empregada, etc. Quero lembrar, viva a economia saneadora do mercado, que, semanas atrás, a CSN e um laboratório transnacional tomaram um carão por aumento abusivo de preço. Ai, eu tô maluco! Depois querem, enquanto milhões voam pra lá e pra cá numa roubalheira desenfreada, que neguinho suba o morro, pra manter essa lei e essa ordem, com aqueles salários. O tiroteio ainda nem começou, mas já dá pra identificar os grandes quadrilheiros e seus comparsas. Só não vê quem não quer.

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Crônica de Aldir Blancno jornal de 4/5/1997 Foto: Acervo Estadão

Academia Brasileira de Maluquices [4/5/1997] ALDIR BLANC O grande cronista, feito aquele samba, fala de umas coisas que a gente não quer acreditar. Foi o que fez João Ubaldo Ribeiro, na crônica de 16 de fevereiro do presente (de grego) ano, sobre a "tremelicação documental". Até hoje, se dou uma fugidinha ao Bar da Maria, encontro um cara que me pergunta, riso de orelha a orelha: - Você escreve crônicas no Estado? Me preparo para os elogios, mas invariavelmente meu ego recebe um prato de vatapá nas bochechas: - Você tem como mandar um recado meu pro João Ubaldo? Aquela do tremelique na hora de assinar foi demais! Incrível. O que era, até o dia da crônica fatídica, um bando desarticulado de hesitantes virou um glorioso exército de trêmulos. Marmanjo que só preenchia cheque trancado a sete chaves pra que ninguém testemunhasse a suprema vergonha daquele ligeiro tremor, pasmem, saiu às ruas, no domingo radioso, pedindo a conta, a caneta empunhada como uma espada, diante do português perplexo na caixa registradora: - Viu só como eu tremo? Que se dane! O João Ubaldo também tem isso. Bota um limão da casa pra tremedeira aumentar. Aproveito a oportunidade e também tomo um, que ninguém é de ferro. Vocês sabem, batida estimula reflexões inúteis, que são as melhores. Chego a conclusão de que diagnóstico fatídico não mata. São as pequenas limitações, as quase imperfeições, mazelas que ocultamos, as responsáveis pelo massacre físico e psicológico cotidiano. O sujeito abaixa pra apanhar o sapato e fica estirado de bruços no chão, respirando de boca aberta, como um peixe fora dágua. Uma filha vem em seu socorro. - Que foi, pai? Sentiu alguma coisa? Nosso herói se levanta, resmungando: - Uma tonteirazinha de nada. Já passou. O riso amarelo esconde o que deveria ser a verdadeira resposta: - Senti, sim. Senti o peso dos anos, de uma hora pra outra, como se o Everest tivesse se abatido sobre minhas costas. A próstata não é potencialmente tão letal quanto o pequeno vexame. Dias desses, minha mulher foi a um compromisso de trabalho, noite de autógrafos ou coisa parecida. Fugi para o Lamas. Bebendo chope numa boa entre os melhores, ou seja, os piores (Mello e Marco Aurélio), sinto uma severa comichão na nuca. Me viro e dou de cara com uma gata tipo Juliette Lewis me olhando, extasiada. Atribuo a expressão da moça ao banho interpretativo do Paulinho da Viola, e agora do Emílio Santiago, no samba-canção 50 Anos, música do Cristóvão Bastos e letra minha, que andou tocando por aí. Cheio de segundas e terceiras intenções (já passam das 2 da manhã), falo bem alto, pra ser ouvido na mesa dela: - Isto é confidencial: na verdade, Paulinho ficou rouco na hora da gravação. Aquela voz é minha. Recebo outra encarada. Por trás da casca de canalha-cálida, do pôster "sou avô, mas não estou morto", um medo pavoroso me revira as entranhas. Aí, ela se encaminha em direção à nossa mesa. Meio encolhido na cadeira, escuto sua voz vindo de muito longe: - Você é o Aldir Blanc? Meu Deus, a cara da Juliette Lewis. Gorgolejo um "so-sou". E ela, com a maior gentileza: - Tem um fio enooorme de macarrão pendurado na sua barba... Também me comporto de maneira estranha em jogos do Vasco. Bel, minha caçula, permanece ao meu lado, perguntando de cinco em cinco minutos se está tudo bem. Vinte e três centros sobre a área, duas cabeçadas pra fora. Apenas um chute certeiro. Deles. Aperto com raiva a lata de cerveja, que parece ter cabelos. Goool... do adversário. Minha filha, suavemente, me trás de volta à realidade. - Pai, larga o gato. Ele já está morto mesmo. E tem aquela da olhada de relance pro fundo do vaso. Numa festa infantil, em meu trágico passado, já saí do banheiro, gritando: - Sangue! Sangue! Um coágulo horrível! Era um invólucro de Sonho de Valsa jogado na água por uma criança. Domingo último, no café da manhã, me despedi de minha mulher, beijei meus netos com os olhos rasos dágua e avisei: - Creio que soou minha hora. Fui ao banheiro pouco antes de vocês acordarem. Não tenho coragem de voltar lá. Chamem a polícia, os bombeiros, um exterminador do futuro. Quando dei aquela conferida rápida, vi uma coisa tenebrosa no fundo, uma espécie de alga gigantesca, um alien pra Sigourney Weaver nenhuma botar defeito. Acho que vou perder os sentidos. Depressa, Mary, pega minhas gotas de Efortil. Não foi preciso. Mais uma vez, devo a vida à minha companheira. Ela foi magnífica: - Quer parar com essa frescura? Fiquei com tanta raiva quando tiraram nosso direito de deduzir gastos com educação que atirei o formulário do Imposto de Renda na privada.

.Pais e filhas no fim do milênio [16/11/1997]

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ALDIR BLANC Tornei-me uma espécie de conselheiro de amigos com um problema seriíssimo: filhas em idade de namorar. Tenho quatro, a mais velha, casada, graças a Deus, com 26 anos e a caçulinha com 16. Sou catedrático no assunto. Quando relembro as confusões em que me meti por causa delas, me pergunto como não fui parar no prontocor. A primeira experiência é sempre traumática porque se dá pelos olhos de um amigo. Você está no buteco e nota que, digamos, o Walter Hack levanta como se tivesse molas e corre pra porta. Acompanha, encantado, o balanço da moça que os olhos míopes julgam ser nova no pedaço. Chocado, o amigo reconhece a fofura. Fica sem jeito. Você, surge pronto para a gozação. - Aí, hein? O cara pigarreia, solene: - Ela virou uma linda mulher e a gente nem viu... - Estranhando o tom compungido de um sujeito que consegue fazer a Derci Gonçalves ficar ruborizada, você sente o cheiro da pólvora: - Ela, quem? - Sua filha. A pressão cai. Ou sobe. Me lembro como se fosse hoje do primeiro atrito por causa de marmanjo mal-intencionado. Uma das meninas estava deitada no quarto, cheia de gripe, com preocupantes dores de cabeça e febre alta. Eu jogava sinuca na sala ao lado e aparecia toda hora no quarto, me esvaindo em cuidados, cafunés e vitamina C. Lá pelas tantas, fui à cozinha buscar meu próprio remédio, uma cervejinha bem gelada, visto que fico sempre muito abalado em doenças filiais. Quando voltei, dei uma conferida no quarto e bati de frente com o seguinte cenário: a menina, nervosa, parecia ter piorado bastante. Um detalhe destoava de forma grotesca dos pôsteres e ursos de pelúcia do quarto juvenil: um par de botas pretas ao lado da cama. Na cadeira de balanço que eu botei no quarto pra ela ter uma alternativa agradável de descanso, um motoqueiro de costelas à la Menen, com o capacete no colo. Nos pés, os meus chinelos. Peguei meu taco favorito, com o escudo do Vasco na empunhadura e ameacei a peça. Aí, aterrorizado, o canalha nelsonrodriguiano pronunciou a palavra fatal: - Desculpe, tio. Dadas as circunstâncias, fui até bastante delicado: - Em primeiro lugar, tio é a senhora sua mãe! A gente dá nescau, compra umas 5 mil chupetas, assopra o mertiolate, lê as revistinhas da turma da Mônica e aparece um cafajeste como você pra estragar tudo. Pode ir tirando meus chinelos das patas e o pônei da garoa, tu não é homem bastante pra ter um cavalo na chuva. Tu joga sinuca? - Mais ou menos, tio. Quebrei o taco importado naquelas costeletas sórdidas. Nem tudo foi tão doloroso. Patrícia apareceu aqui com um paulista, fotógrafo e corintiano, o Daniel. Feitas as apresentações, fui com a cara do rapaz e perguntei: - Quer beber alguma coisa? - Catuaba Virtude. Nenhum pai que recebe essa resposta pode dar-se ao luxo de ignorar o futuro inexorável: um mês depois, ela estava grávida do Vinícius, meu neto com um sorriso mais desconcertante do que o do Burt Lancaster naquele filme de pirata. Hoje, quando eles vêm ao Rio, acontecem coisas assim: aviso à preocupada avó que o garoto pegou uma tesoura e as obras completas de Alejo Carpentier. Vovó corre para sanar o problema, mas o garoto dá o tal sorriso e, quando chego, os livros já viraram bandeirinha de São João, com a ajuda da avó. Se tento reclamar, tomo bronca: - Cale a boca! Não vê que o menino pode ficar traumatizado? A resposta vem na ponta da língua, mas desisto. Um domingo, entrei em meu escritório e havia um elemento, parecido com esse bailarino de flamenco, ex- namorado da Naomi Campbell, em posição de lótus, na minha poltrona favorita. Perplexo, tentando manter a calma, perguntei à Tatiana o que significava aquilo. - Ele é discípulo do Ananda Pranda e está tendo uma iluminação. Fui rapidamente pegar outro taco pra acrescentar algumas velas àquela lamparina que o imbecil tinha no lugar da idéia, mas constatei que meus instrumentos pedagógicos favoritos estavam em falta, partidos, junto com meu coração. O místico desapareceu e entrou em campo o Felipe, escultor, de temperamento romântico. Pensei com meus botões: ah, este é um bom rapaz. Um mês depois, Tatiana estava grávida dos adoráveis gêmeos Pedro e Joana. Já a Mariana adentrou o gramado com um espanhol sisudo, muito religioso, apreciador de vinhos tintos encorpados, desses que dá pra gargarejar em amidalite. Respirei, aliviado, mas fiz um teste importantíssimo. - Sim. - Responda rápido. Franco ou República? - República. E recitou um poema de García Lorca. Nos abraçamos, eu, com lágrimas nos olhos e voz embargada, pensando: tirei a sorte grande. Um mês depois, a pimentinha Milena já estava fazendo arte na barriga da Mariana. Vocês vão me dar licença. Bel, a caçula, arranjou seu primeiro namorado. Provavelmente, vai botar chinelos, me chamar de tio, ser metido a artista, devastar minha adega. Estou de saída para a loja de material de sinuca. Preciso comprar tacos novos. .

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