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Vegetarianos que se tornaram açougueiros

Ex-vegetarianos e veganos nos EUA abrem açougues focados em carnes de animais criados em pastos esperando revolucionar o sistema alimentar no país

Kate Kavanaugh, dona de um açougue em Denver (EUA), se tornou açougueira para mudar a produção de carne nos Estados Unidos. Foto: Ryan Dearth/The New York TimesFoto: Ryan Dearth/The New York Times

De Nova York

No Western Daughters Butcher Shoppe, em Denver (EUA), Kate Kavanaugh tirava a parte de nervos de um pedaço de carne do tamanho de um travesseiro grande. “O flat iron steak é a segunda parte mais tenra do corpo de um bezerro”, diz ela. Depois de cortar a carne em vários bifes pequenos, ela embrulhou um. Em seguida, pegou alguns cubos do sebo moldados na forma de personagens de Star Wars e foi para a cozinha ao lado para preparar o almoço para nós.

Antes de se tornar açougueira, Kate era vegetariana radical. Não comia carne há mais de uma década pelo profundo amor que nutria pelos animais e respeito pelo meio-ambiente. E se tornou açougueira pelas mesmas razões.

Kate Kavanaugh, dona de um açougue em Denver (EUA), se tornou açougueira para mudar a produção de carne nos Estados Unidos Foto: Ryan Dearth/The New York Times

Kate Kavanaugh, 30 anos, faz parte de um grupo pequeno, mas bem sucedido, de ex-vegetarianos e veganos que se tornaram açougueiros esperando revolucionar o atual sistema alimentar nos Estados Unidos. Eles se consideram açougueiros éticos e abriram açougues que fornecem carne de animais criados em pastos, tendo como objetivo primário o bem-estar do animal, a preservação ambiental e a utilização da carne do animal inteiro, com menos desperdício.

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É um nítido contraste com a pecuária bovina em escala industrial que produz a maior parte da carne consumida no país e é objeto de investigação e críticas por causa do desperdício, do abuso de antibióticos e as condições desumanas e perigosas a que são submetidos os animais. 

O movimenté tão forte que alguns grandes produtores de carne dizem que estão mudando suas práticas. Mas, para esses novos, o setor vem avançando com muita lentidão e a falta de transparência não inspira confiança. “Basicamente, estou nesse processo para virar o setor de carne convencional de ponta cabeça”, diz Kate. 

Ela tem uma dieta majoritariamente composta por vegetais, apesar de ser dona de um açougue. Seu mote é"comer carne melhor e com menos frequência" Foto: Ryan Dearth/The New York Times

Derretida a gordura na panela, ela acrescentou a carne deixando-a fritar enquanto cantarolava A Marcha Imperial (tema de Darth Vader em Guerra nas Estrelas). Ela fritou a carne por um tempo bem maior do que eu imaginava - como muitos dos seus clientes ex-vegetarianos, ela prefere a carne ao ponto.

Foi um dos melhores steaks que já provei, o que significa muito: gosto da carne “black and blue” (em tradução literal, "preta e azul", preparada em alta temperatura, com a parte externa quase torrada e a interna mal passada). Crocante por fora, aveludada e surpreendentemente suculenta, ela tinha um sabor mineral e uma musculosidade que tornava seus primos alimentados com milho, mais insossos, parecerem carne de frango.

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A açougueira seguracostelas que tinha acabado de cortar. A carne marmorizada é uma das marcas de seu açougue Foto: Ryan Dearth/The New York Times

O movimento de açougues éticos ganhou força há 15 anos, depois de o jornalista Michael Pollan escrever um artigo em 2002 no New York Times Magazine sobre os abusos contra o gado de corte na pecuária intensiva e lançar seu livro O Dilema do Onívoro, em 2006.

Uma das questões fundamentais que ele levanta no livro é se conseguiria matar um animal - primeiro uma galinha, depois um porco selvagem - para seu próprio jantar. “Não me parecia demais pedir a um apreciador de carne, que eu era e ainda sou”, ele escreve, “que pelo menos uma vez na vida assuma responsabilidade direta pela morte daquilo de que seu hábito de comer carne depende”.

Este questionamento tocou muita gente, incluindo veganos e vegetarianos que objetivam mudar o sistema da pecuária intensiva

Para Janice Schindler, 28 anos, vegana durante cinco anos e agora gerente geral do açougue Meat Hook, no Brooklyn, o animal em questão era um peru no evento “Mate seu próprio peru de Ação de Graças”, em uma fazenda local. “Foi mórbido. Fui a única a me inscrever”, diz ela. “Nunca tinha matado um animal antes. Os perus são grandes, mas, quando você os coloca no cone para o abate de cabeça para baixo, eles ficam completamente relaxados. Então, você corta uma artéria. Isso os atordoa, eles sangram. Passei o dia inteiro na área de evisceração. Era repugnante. Mas foi fascinante”.

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A experiência foi a porta de entrada para seu treinamento como açougueira, que ela começou logo depois.

Janice Schindler, gerente do Meat Hook, voltou a comer carne e entrou no movimento dosaçougues éticos ao descobrirque as monoculturas de milho e soja, importantes na dieta vegana, causamestragos ao meio ambiente Foto: Benjamin Norman/The New York Times

Sua transformação de vegana para açougueira ética foi similar à de outros com quem conversei. A dela começou no ensino médio: como membro da Future Farmers of America (futuros fazendeiros da América, em tradução livre), em Lucerne Valley, Califórnia, era encarregada de cuidar de um cordeirinho enquanto ele crescia, de uma minúscula bola de lã até se tornar um adolescente rampante e com o balido forte. “Nada me preparou para o terremoto emocional de vender aquele cordeiro como carne. Seu nome era Frederik”, conta. 

Essa foi a primeira crise existencial que a levou a se tornar vegana, diz. A segunda mudança foi na faculdade, quando voltou a comer carne ao saber que as monoculturas de milho e soja, que são importantes na dieta vegana, estavam causando estragos ao meio ambiente. “Sentia que estava sendo enganada como consumidora cada vez que ia ao supermercado e via um nome de fazenda falso no pacote de um hambúrguer de soja transgênica. Sabia que eu precisava encontrar um sistema alimentar alternativo”.

O sistema que ela, Kate Kavanaugh, e outros adotaram tem raízes na criação bovina em pastos, em que os animais se alimentam de capim e têm papel integral na sustentabilidade, fornecendo adubo para fertilização, o que estimula o crescimento de uma diversidade de gramíneas, além de revolverem a terra com seus cascos permitindo que a água da chuva chegue às raízes.

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Os que defendem o sistema afirmam que grandes áreas de gramíneas podem ser regeneradas e têm potencial de sequestrar o carbono, mais do que emiti-lo, como na pecuária industrial. (Os críticos desse enfoque alternativo dizem que nem todos os estudos mostram um aumento do sequestro de carbono em gramas de pasto e que aquele sistema não consegue produzir carne suficiente para atender à demanda atual).

“Cresci caminhando pelas pradarias do Colorado e desenvolvi um grande amor por essas planícies”, disse Kate. “É como o amor que as pessoas têm pelo oceano, quando você contempla quilômetros sob um grande céu azul. Quando decidi abrir um açougue, eu queria somente me aprovisionar de carne de animais alimentados 100% com grama de fazendas que estavam ajudando a regenerar as pradarias”. 

Criar os animais em pastos de capim, no entanto, é muito mais caro do que em confinamento, o que torna a carne mais cara para o consumidor. Kate Kavanaugh, por exemplo, cobra US$ 21 por 450 gramas de filé mignon, comparado com os US$ 8,99 cobrados em no supermercado próximo, King Soopers.

Quando Joshua Applestone, 49 anos, abriu o Fleisher’s Grass Fed and Organic Meats, em Kingston, Nova York, em 2004, ele pertencia a uma quarta geração de açougueiros e era o primeiro ex-vegetariano. Ao abrir um dos primeiros açougues éticos nos Estados Unidos, tentou tornar esse tipo de carne mais acessível.

“Quando abri o açougue as pessoas ficavam surpresas com os preços. Mas nossos custos são muito mais altos do que os custos para uma empresa gigante. Pagamos mais para ter o controle da qualidade dos nossos animais, da sua alimentação, do seu tratamento, a maneira como são transportados, como é o abate e o corte. Quando as pessoas entenderam isso, o negócio decolou”.

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Para ter esse tipo de controle, açougueiros como Applestone cultivam um relacionamento estreito com as fazendas e ranchos locais, que visitam periodicamente. Essa relação mais íntima inspira a confiança dos clientes e cria uma transparência que falta na pecuária industrializada.

Applestone vendeu a Fleischer’s (que se tornou Fleishers Craft Butchery) e abriu a Applestone Meat Co, açougue que funciona 24 horas com filiais em Stone Ridge e Hudson, em Nova York, e que usam máquinas automáticas refrigeradas para reduzir o preço da carne e torná-la mais acessível para o consumidor.

“Meus clientes costumam comer menos carne do que a média dos americanos. Procuro ter cortes menos caros em estoque, e sempre tenho alguns disponíveis com preços abaixo de US$ 10 pelo meio quilo. Pode não ser o filé, mas vendo peito de frango sem osso e sem pele a US$ 9,99, que todo mundo quer”.

Como diz Anya Fernald, uma das fundadoras da Belcampo Meat Co., “carne barata não é algo vantajoso. Quero que as pessoas gastem o mesmo que gastam hoje com carne e comprem uma carne melhor, mas em menor quantidade”.

Criar animais no pasto é uma das prioridades dos que se denominam açougueiroséticos, comoAnya Fernald uma das fundadoras daBelcampo Meat Company Foto: Brown Cannon

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Anya Fernald, 44 anos, se tornou vegetariana ainda adolescente, ao saber que eram necessários 5 quilos de grãos para obtenção de 450 gramas de carne. "A falácia disto é que vacas não precisam comer grãos”, diz, "elas têm cinco estômagos desenvolvidos para comer capim".

Depois passar seus anos de escola secundária e faculdade fazendo uma dieta vegetaria de iogurte, pizza e macarrão com queijo e legumes congelados, ela começou a comer carne novamente na Europa, onde trabalhou alguns anos com agricultores locais. “Assim que comecei a comer carne, minha saúde melhorou. Minha agilidade mental aumentou, perdi peso, minha acne sumiu, meu cabelo ficou mais encorpado”. Toda a carne vinha de animais saudáveis, alimentados com capim, criados nas fazendas onde ela trabalhou.

A carne de animais alimentados com capim é mais saudável para os humanos do que a de animais alimentados com soja e milho; contém níveis mais altos de Omega-3, conjugados com ácido linoléico, betacaroteno e outros nutrientes. As vacas alimentadas predominantemente com capim e forragem são mais saudáveis também, exigindo menos uso de antibióticos.

E há mais um benefício para a carne de animais alimentados com capim: ela pode ser realmente deliciosa, como o steak que comi em Denver.

Applestone lembra vividamente aquele primeiro sanduíche de bacon (de porco criado em pasto de grama) na sua vida pós-vegetariana, que foi servido num tenro bolinho de batata da Martin’s. “Achei que era a melhor coisa que já tinha colocado na boca”, diz.

Jered Standing, dono da Standing's Butchery, parou de comer carne depois de trabalhar no açougue de um supermercado. "Nunca achei errado comer carne. Mas não queria dar apoio à indústria”, afirma Foto: Coral Von Zumwalt/The New York Times

Jered Standing, 40 anos, proprietário da Standing’s Butchery, em Los Angeles, nunca deixou de ansiar por carne durante os cinco anos em que foi vegetariano. Ele evitou carne depois de ter trabalhado no açougue de um supermercado quando era estudante. “Fiquei muito impressionado com o que vi”, conta ele. Mesmo assim, não conseguia tirar os bifes grelhados e as salsichas assadas da sua mente. 

Depois que leu O Dilema do Onívoro, decidiu dar uma chance à carne de açougue ético, primeiro trabalhando no Whole Foods Market e depois com Fernald na Belcampo, antes de abrir o seu próprio açougue. “Ser vegetariano sempre foi uma luta. Nunca achei errado comer carne. Mas não queria dar apoio à indústria da carne”. E vender carne proveniente de fontes alternativas é uma maneira de protestar contra as fábricas da pecuária sem ter de ser abster da carne. Mesmo assim ele tem observado o que chama de “reação vegana”, incluindo comentários ásperos no seu Instagram e protestos na frente do seu açougue.

Lauren Garaventa corta costelas bovinas em seu açougue e restaurante, The Ruby Brink, emWashington Foto: Ian C. Bates/The New York Times

Outros açougueiros também têm sido criticados. “Desde que me tornei açougueiro sou chamada de coisas horríveis na internet e isso não está certo”, diz Lauren Garaventa, uma das proprietárias do açougue e restaurante Ruby Brink, em Ashon Island, Washington, que foi vegetariana e ativista por direitos animais. “O problema é maior aqui, com os abatedouros concentrados e animais tratados como commodities. É isso que temos de atacar, e não uns aos outros”.

“Escolhi protestar pela única maneira que podia, que foi rejeitar a carne”, diz Fernald. “E agora a Belcampo é a minha opção nesse sentido, lutando para mudar o sistema. E acho que as duas etapas da minha vida são totalmente coerentes”.

RECEITA: + Confira o prato feito por Kate Kavanaugh, do Western Daughters Butcher Shoppe: Fraldinha com salada e molho de tahine

/ Tradução de Terezinha Martino

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